Chegou
mais cedo que de costume. Fitou seus olhos arredondados, cor de lodo, no pote
de doce de pêssegos, que estavam em cima da geladeira, Caminhou até a cama e se
desfez do fardo.
Olhou
atentamente para as paredes de cores iguais, com uma única marca, demarcando o
território ilusório dos desejos incomuns. Sentou-se à beira da cama, no chão,
sacou de dentro da bolsa o diagnóstico. Não teve coragem abrir o envelope com a
notícia já sabida.
Chovia
lá fora. Chovia também lá dentro e, por fora e por dentro, as paredes escorria
água cristalina feito numa bica. Levantou-se lentamente e pegou em seus
guardados a certidão, que dizia mais ou menos assim:
“Aos
nove dias, do mês de janeiro, do ano de dois mil e doze, da Era de Nosso Senhor
Jesus Cristo, atestou-se o falecimento de...
[uma
pausa e um desaguar]
...o
falecimento de: Amor de Inocêncio Puro dos Anjos. Óbito ocorrido às
22h36.
Causa
do falecimento: falência múltipla da vida e dos tecidos de desejos, acarretada por overdose de erros
Declarou
o óbito: Eu de Desejos Inocêncio Puro dos Anjos e pela Dra.: Vida De Fato Real”
[...]
Teceu lentamente todas as palavras ali contidas e criou coragem para ler
novamente o diagnóstico:
“Laudo:
Mal de Amor Crônico – Observações: Paciente com riscos de desenvolver apatia ao
amor em excesso”.
[...]
E veio a decisão. Ouviu a música preferida, arrumou todas as coisas. Deixou, em
ordem, os livros, os textos e os poemas ainda não escritos. Soluçou com o frio
que subia das pernas à alma.
Acalentou
o desespero e arrumou as malas para não levar nada... Esperou até a lua ir se
recolhendo e o sol brilhar, fechou lentamente os olhos e voou céu abaixo.