domingo, 8 de setembro de 2013

Epitáfio dos vivos

No dia anterior à morte, todos os sinos estavam em silêncio.
A vida continuava no seu curso normal, serpenteando por becos e ruas. Se alastrava entre os bares e jorrava sorrisos úmidos, no meio da multidão, em minha memória.

Eu, nem ria, nem chorava. Era uma reação de não reagir. Não tinha mais o mínimo desejo de interagir com as folhas, o sol, as flores ou as borboletas. Estava num cansaço terrível pela transitória passagem do pouco para o nada.

Ainda confundia-me com os poucos chamamentos, profundos e quietos, que uns poucos faziam. Dentre eles, escutava as vozes conhecidas de quem, de alguma forma, tentava acordar-me pela memória ou pelo arrependimento.

De antes, uma verdade eu levara: não há arrependimentos vivos na morte. O arrependimento está em quem continua anterior a esta condição de silêncio, de quietude e imutação, que por vezes, chega a ser perturbadora.

Quando permitido, caminho sem saber as horas ou sem preocupar-me mais com elas, já que não preciso ir ou chegar a lugar algum, e vejo lápides...muitas lápides!

Em cada uma há uma mensagem escrita. Para uns todo o amor eterno, que já tem a data de fim marcada. Em outras, longos textos que rementem ao simples desejo de ter dado um "oi", "tchau", "até logo, meu amigo"...

Curiosamente, não vejo o mesmo feito por outros mortos. Todas estas lápides são dos vivos que conheci e que, por algum motivo banal deixaram de dizer a mim, enquanto eu podia olhar nos olhos ou dar um longo abraço... Vendo essas letras que escorrem água benta delas, lembrei-me de longos abraços que tive com alguns amigos, das danças e das risadas e das lágrimas...até ter esgotado tudo e uns irem antes de mim.

Nessas minhas lembranças, visualizo fracamente o rosto de alguns, mas o arrependimento é tanto que desfigura e vai, aos poucos, sumindo feito fumaça. Se eu pudesse falar para eles me ouvirem, diria para não perderem tempo enquanto podem ser escutados e sentidos. Nem deixar de escutar e sentir.


domingo, 1 de setembro de 2013

A morada


Vazia.
Acolhida pela aurora que atormentava o sereno pálido, mas reluzente no gramado verde-musgo, acrescentado por pequenos pontos amarelos, de textura aveludado-suave.

Encolhida.
Janelas torneadas por uma borda vermelha, contrastando com as paredes verde-cana. Porém, escondida no meio do lilás de Santa Bárbara, para proteger dos raios, relâmpagos e trovões. Só não protegeu da amargura do esquecimento.

Distante.
Acariciava o luar, vendo o silêncio falar vozes na cabeça e murmurar atordoadas estórias de um tempo muito longínquo, em até os bichos falam a nossa língua.

Fora.
Em mim, morava essa morada vazia de paredes feitas de madeira maciça, com todas as frestas amparadas por arredondadas ripas. Imitavam um auto-relevo, igual à barra da saia da velha que debulhava em forma de godê, tantas vidas numa só.

Dentro.
A casa estava fora de mim e aqui já não existe mais o espaço preenchido pelo barulho coordenado das madrugadas com finos respingos de uma chuva delicada e macia.
Eram tempos de morar fora e dentro de nós. Era uma moradia de memórias...hoje, todas, tardias.